Tira-linhas

2015

ferro, giz, feltro e lousa

Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo

fotografia: Marcelo Arruda

Leia texto de Ana Avelar

Tira-Linhas em três momentos (com interseções significativas)

Algo como uma troca, condicionada pelo processo, do objetivo da ação pela lógica da ação em si mesma[1].

Rosalind Krauss

 

1. o gesto

“A marca impressa é uma técnica de longa duração: assim, o artista de hoje continua espontaneamente, como outrora, a privilegiar as extremidades de seu corpo – cabeça, mãos, pés – como objetos ou vetores da marca impressa”. Para Georges Didi-Huberman, o gesto que origina essa “marca impressa” possuiria um valor de “fecundidade heurística” – pois, segundo ele, artistas dizem recorrer à impressão do gesto quando lhes falta uma idéia. Nesse sentido, ele indaga: “Por que tal persistência antropométrica?”. Fazer uma marca impressa seria como “emitir uma hipótese técnica para ver o que acontece”[2]. Diante disso, como seria se o artista permitisse que nós desempenhássemos esse gesto fundador? E se, a partir daí, pudéssemos vivenciar algo próximo daquilo que ele ou ela experiencia durante o processo de trabalho?

Propiciando o que aparentemente seria um rabiscar descompromissado, Marcia Pastore nos apresenta os Tira-Linhas para que, por meio desses instrumentos híbridos, meio escultura meio compasso, operemos ações simples que, no entanto, fundam algo no mundo – uma linha, um risco, uma curva.

Entretanto, essa ação, inconsequente apenas na superfície, nos coloca diante do drama da produção artística, feita de escolhas, avanços e recuos nem sempre contornáveis – quando se escolhe riscar, ao mesmo tempo, apaga-se o que foi riscado, impossibilitando que se complete o círculo iniciado, embora o vestígio permaneça como registro do gesto que o instaurou. Assim, não é possível realizar a totalidade do objetivo (traçar um círculo); sendo necessário aceitar essa condição para seguir em frente.

Portanto, o pacto que Marcia nos propõe é aberto e honesto – você pode experimentar o que faço, mas, para tanto, deve compreender e aceitar os desafios que o próprio trabalho coloca, como a resistência dos materiais, a discussão dos conceitos, a inevitável decisão a ser feita após cada novo problema que surge e que acarreta perdas e sobras. Dessa maneira, é possível desenharmos sem jamais termos antes tentado, porém nunca ingenuamente: Marcia nos introduz nesse campo alertando-nos para suas tensões.

Ao mesmo tempo que nos deparamos com essa verdade da arte, que, aliás, simula os tropeços do mundo, somos introduzidos generosamente ao fazer do desenho através do uso desse instrumento autoportante. Ou seja, Marcia extingue nossa angústia diante do papel em branco, a ansiedade do primeiro gesto – o instrumento traça sempre o mesmo percurso, após a primeira manipulação, antes de nós, outros já viveram o círculo incompleto, somos parte de um processo maior, repetitivo, e, ao mesmo tempo, libertador. Provavelmente libertador porque repetitivo. Trata-se de um gesto técnico, simples, que traz um sentido histórico de seu próprio fazer. Somos estimulados a enfrentar o desenho e pensar depois.

 

2. a escultura

Embora o rastro, produto da ação mediada, seja um dado fundamental, é preciso olhar para o instrumento dessa mediação. Esses objetos-compassos apresentam uma monumentalidade conferida pelo superdimensionamento de um objeto originalmente de pequenas dimensões, empregado para desenhar círculos. No entanto, tradicionalmente, era também usado para medir distâncias em mapas, ou seja, para navegar – uma atividade que exigia enfrentar as surpresas de um novo mundo.

Ao serem colocados sobre tablados – uma arena sobre a qual se age – evidenciam-se como esculturas móveis, construídas com materiais frequentemente presentes na produção de Marcia. Vemos subvertida a aplicação tradicional desses materiais: o ferro, geralmente estrutura, é exposto; o gesso, do qual se faria molde, pode riscar.

A fatura árdua (fisicamente penosa) desses objetos-esculturas é compartilhada entre a artista e alguns profissionais que desenvolvem tarefas específicas; ou seja, não há um sentido apenas conceitual desse fazer contemporâneo – ele requer planejamento, mas também habilidades técnicas que a artista executa ela mesma e/ou divide com esses profissionais. Desse modo, Marcia ocupa o lugar de um labor tradicionalmente masculino como uma igual: o resultado são objetos potentes e elegantes, que não explicitam a força e o trabalho pesado que os produziu – tampouco escondem sua fatura, deixando para nós dicas que nos convocam a tentar compreendê-la (como foram feitos? como funcionam?).

 

3. o desenho

A lousa como suporte do desenho constitui uma larga tradição marginal, curiosamente tema do livro Blackboard Sketching, por um certo Frederick Whitney, artista e professor norte-americano, publicado em 1909. Lá estão registradas técnicas que orientam o desenhista-professor – ou a desenhista-professora, uma vez que o autor se dirige sobretudo às mulheres – sobre os mais adequados ângulos para atingir os efeitos de luz e sombra desejados. Segundo Whitney, “Desse modo, a professora levará as crianças, por meio do exemplo, a entenderem o desenho como um meio de expressão natural e espontâneo”. O autor da apresentação desse manual inusitado – um ainda mais desconhecido Walter Sargent – comenta as conquistas de uma educadora que domine o desenho sobre lousa: “Um desenho como esse é uma linguagem que nunca falha em prender a atenção e despertar um interesse fascinante. Considerou-se isso impossível, para a maioria de nós, porque nunca o fizemos. Foi altamente recomendado, mas ninguém mostrou-nos como fazê-lo”[3].

É inegável o lugar da lousa em nosso imaginário infantil, embora atualmente ela tenha sido substituída por quadros brancos e projeções. A ela estão associadas duas ações às quais somos moldados ao ingressarmos na vida escolar – ouvir e escrever. Entretanto, quando convocados para desempenhar a escrita diante da classe, a situação criada é de exposição e exame de nossas habilidades, seja pela caligrafia legível ou pela resposta correta. Marcia subtrai os aspectos de avaliação, geradores frequentemente de angústia, tornando a ação algo despretensioso. Substitui a escrita por uma forma geométrica clara – não há lugar para ilegibilidade ou mensagens obscuras.

Os Tira-Linhas, de Marcia Pastore, parecem possuir um lastro evidente na tal “fecundidade heurística” de que fala Didi-Huberman, mencionada no início deste texto. Afinal, a artista nos conduz por métodos de tentativa e erro pelo aprender, descobrir e solucionar problemas, sendo que a presença da artista é rarefeita, induzindo-nos a uma técnica quase autodidática. A lousa está sob nossos pés, o tira-linhas deve girar, partes de um círculo serão traçadas.

 

Ana Cândida de Avelar

 


[1] Empresto de Rosalind Krauss esta frase, que assim se expressa sobre a escultura de Richard Serra. (FOSTER, Hal e HUGHES, Gordon (orgs.). Richard Serra. Textos Benjamin H. D. Buchloh, Annette Michelson, Yve-Alain Bois, Douglas Crimp, Rosalind Krauss, Hal Foster. Cambridge, Massachusetts; London, England: The MIT Press, 2000. October files.)

[2] Na hoje pouco mencionada exposição L’Empreinte, realizada no Centro Georges Pompidou, em 1997, o curador Georges Didi-Huberman apresenta uma investigação dos sentidos da marca impressa: como paradigma, processo e procedime

[3] WHITNEY, Frederick. Blackboard Sketching. Springfield, Mass., USA: Milton Bradley Company, 1909.