Jogos de força e direção: linha, agulhas e ímãs

2023

Jogos de força e direção: linha, agulhas e ímãs (lina 1, 2 e 3), um diálogo com a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi.

mdf, tinta imantada, linha, agulha e ímãs

Trabalho produzido para o Dialogues Project organizado por José Pardal Pina para a Revista Umbigo número 84

Dialogues project – Dialogue #19

organização José Pardal Pina

Revista Umbigo 84

Fotografia Marcelo Arruda

 

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Marcia Pastore x Instituto Bardi | Casa de Vidro

Por José Pardal Pina

Em Lina Bo Bardi: O que eu queria era ter história, Zeuler R. Lima desenvolveu uma obra biográfica notável daquela que será, por ventura, uma das arquitetas mais controversas da arquitetura moderna.

Irascível, ambiciosa, contraditória, belicosa, generosa, criativa. Lina Bo Bardi foi tudo isso e muito mais: romântica, ingénua, competente, “estalinista”, “antifeminista”. E podíamos continuar: apaixonada, solitária, trabalhadora, idealista, implacável com os ricos, doce com os desfavorecidos e a classe trabalhadora.

Ler a sua biografia e conhecer a sua obra, desde os “pitorescos” desenhos e aguarelas quando jovem, à construção do SESC Pompeia, é relembrar a evolução da teoria da arquitetura do século XX,  a posição das mulheres nas sociedades patriarcais e a obstinação e rebeldia necessárias para as ultrapassar. Bo Bardi reclamou o seu lugar no seio de uma disciplina votada praticamente aos homens. Ultrapassou a misoginia e o sexismo. Lutou e trabalhou arduamente, tecendo laços de amizade com empresários e políticos que servissem a sua ânsia de “ter história”.

Ao lado do seu igualmente ambicioso marido, Pietro Maria Bardi, Lina Bo Bardi desenhou um dos mais curiosos museus alguma vez construídos na América do Sul, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), não só pelo desafio construtivo e de engenharia, mas também pelo cabal entendimento das múltiplas valências de um museu e da natureza híbrida do espaço museológico e museográfico. Para além da função expositiva, o MASP era um lugar pedagógico, de encontro, espontaneidade, criação e experimentação. A praça que aberta debaixo daquele volume pesado, suspenso por uma possante estrutura em pórtico, servia de dinamizador informal para a cultura e a cidade.

Anos mais tarde, no SESC Pompeia, essas preocupações estavam igualmente presentes, embora com um foco maior no utilizador daquele complexo desportivo, cultural e social, e uma visão política mais refinada. Para todos os efeitos, o SESC Pompeia foi projetado como uma grande casa do povo, onde os brasileiros podiam ler, discutir os acontecimentos da vida pública, tratar da saúde e do bem-estar, assistir a eventos vários e nutrir a boa convivência. É uma construção que se impõe e se agiganta para o céu, sem descurar as pré-existências e a história do lugar.

Ambos os edifícios se afirmam na malha da cidade. Não pedem licença nem por favor. Assumem-se na sua materialidade possante e surgem como pontos de rutura no contexto do edificado circundante. São marcos e estruturas icónicas, a sombra de um ego imenso.

No entanto, é provável que nenhuma outra construção espelhe de forma tão clara todo o caráter anguloso e poliédrico de Bo Bardi como a casa que projetou para si e para o marido, no bairro do Morumbi, em São Paulo, quando percebeu que era ali que iriam passar o resto da sua vida, já então a cidade se desenvolvia para lá do comportável. Envolta em densa vegetação e apoiada em pilotis perigosamente delgados, a Casa de Vidro constitui o mais cabal caso de estudo da arquiteta ítalo-brasileira, ao congregar todo o seu conhecimento técnico, histórico e cultural da disciplina da arquitetura, mas também as suas contradições e o idealismo caído por força da realidade e de um statu quo do qual não quis prescindir.

Simultaneamente estúdio e casa de habitação de Lina e Pietro Maria Bardi, a Casa de Vidro é agora um lar de memórias. Como todos as casas-museus, guarda a melancolia do passado e o triste véu dos objetos inanimados e dos espaços sem ocupação. E mesmo que seja um testemunho indelével do pensamento e da prática arquitetónicas, sendo possível fazer a crítica da arquitetura moderna através dele, a verdade é que a Casa de Vidro, por mais racional e funcional que seja, é uma casa, um lar, uma habitação, com tudo o que isso tem de idiossincrático, incompleto, incoerente.

Uma casa é um lugar de vivências que se estabelecem para lá desse distanciamento crítico que identifica patologias, falhanços, periclitâncias. Numa casa, o corpo e a vida moldam-se ao espaço, ao bolor que nasce nas paredes, às fendas que se abrem no chão, às correntes de ar sopradas pelas brechas de uma caixilharia insuficiente. Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard ensina que estudar uma casa implica abraçar a fenomenologia da imaginação, do devaneio. O pensamento reducionista deve ser posto entre parêntesis. A casa é um cosmos, um universo, um potenciador e reanimador de imagens e passados, que mesmo sendo de outros, têm reverberações em nós. É um espaço de sonhos e intimidade, alegrias e angústias, fenómenos que só as ferramentas da arte e da poesia conseguem revelar.

A Casa de Vidro é esse lugar omnitemporal, denso, onde se pode ler a História da Arte e da Arquitetura ao arrepio do Tempo, ao sabor de uma memória do passado que persiste e resiste à rapidez da modernidade, dentro do que o filósofo francês chamaria “a geometria dos ecos” e da “dialética fragmentária”.

Serpenteamos pelas habitações, sob a luz morna dos trópicos, vendo ao longe a silhueta mastodôntica e encrespada de São Paulo. As árvores abraçam-nos e protegem-nos daquela realidade, e as esculturas e pinturas confrontam temporalidades e culturas de geografias múltiplas. O medieval coexiste com o moderno; o indígena com o contemporâneo; o renascimento com o barroco; o sagrado com o profano; o design depurado com a sinuosidade das produções de outros tempos. A cultura europeia partilhava o espaço com a cultura dos povos originários. Objetos, livros, eletrodomésticos. Sobre a mesa, o Leão de Ouro, atribuído décadas depois da sua morte, agora guardado e conservado pelo Instituto Bardi, organização responsável pela salvaguarda da Casa e do espólio da família Bardi. Sob o abrigo da casa, no exterior, perto das escadas que acedem ao interior, os famosos dispositivos de vidro e betão que projetou para o MASP e que sintetizam o seu conhecimento e experiência na área da curadoria.

Entre a copa das árvores, o espaço ganha uma leveza inqualificável: tudo ali parece estar suspenso, a levitar nos brilhos do mosaico, na ligeireza das estantes, nos reflexos dos objetos polidos.

Deambulamos pelo jardim. A fachada principal é radicalmente diferente da fachada posterior. Se numa temos a depuração modernista, na outra temos o vernacular, com as venezianas em madeira. Zeuler R. Lima esclarece: por mais que Lina Bo Bardi tivesse lutado pela justiça social, a verdade é que a morfologia da Casa impunha a mesma separação de género e classes das casas burguesas. Pouco do que construiu ali corresponde ao que inicialmente idealizara – a construção romantizada do “bom selvagem” brasileiro.

É sobre esta personagem antagónica e este lugar complexo e ambivalente que Marcia Pastore se debruça para o Diálogo #19, compondo e decompondo, os espaços íntimos de Lina Bo Bardi e os jogos invisíveis que subjazem ao exercício da arquitetura. Jogos de força e direção: linha, agulhas e ímãs não é um mero exercício formal ou formalista: o projeto denota as poéticas da física, da atração, repulsão, das forças de compressão e respetiva natureza vetorial, dos esforços normais ou transversos, das possibilidades e movimentos dentro de uma malha espartana, ortogonal e racionalista. Pastore constrói e desconstrói, adiciona e subtrai, brinca com alinhamentos e enfiamentos, práticas usuais na arquitetura e na modelação do espaço.

Nesta perspetiva, e por força dos ímãs, este é um projeto em esforço permanente, em que linhas e agulhas trabalham em tensão. Há algo de poético não só no desenho gerado, que mimetiza o esqueleto, a estrutura da Casa de Vidro, mas também na estatia e física das construções, que traduzem as forças cósmicas para benefício humano, buscando essa coisa cada vez mais abstrata a que se chama equilíbrio, num universo absolutamente entrópico.

Marcia Pastore não é estranha à arquitetura. A sua obra, aliás, insere-se no que Jane Rendell designa por “Prática Espacial”: um método teórico-prático que se situa nesse fértil limiar entre arte e arquitetura, sem ter de se cingir exclusivamente a um campo ou a outro. A natureza do espaço e a sua construção são escalpelizadas e postas sobre o estirador, estudando relações, aproximações, afastamentos, desenhando e esculpindo o cheio e o vazio, o peso e a leveza, olhando, enfim, para a infraestrutura física e humana que o suporta e comporta. Veja-se Estrutura Exposta (2021), na qual a artista se debruça também sobre uma casa, a Casa de Ema Klabin, e as redes nevrálgicas que alimentam as várias habitações. Pastore faz uma translação desse desenho soterrado por camadas de estuque e reboco e expõe-no como quem disseca e separa as artérias vitais de um organismo. Em Corpo de Prova (2017), outro diálogo direto com um dos grandes nomes da arquitetura brasileira, Paulo Mendes da Rocha, cabos de aço tensionados e blocos de betão aludem ao equilíbrio de forças, aos pesos e contrapesos da física das construções, e à economia e materialidade da arquitetura do Museu Brasileiro da Escultura, cujo vão de betão parece desafiar as regras da gravidade.

De volta a este diálogo em concreto, numa outra leitura poder-se-ia entender o trabalho de Marcia Pastore sobre os desenhos documentais da Casa de Vidro como uma forma de estudar um campo pouco explorado no âmbito do desenho e da arte – o desenho vetorial e documental. (Há sempre uma camada por explorar nesse inesgotável palimpsesto que se raspa para revelar informações passadas.) Na sua aceção comunicativa e arquivística, ou seja, o desenho técnico é uma ferramenta capaz de sistematizar o conhecimento do espaço através de linhas, tramas e cotas, numa tradição que se reporta até aos primeiros desenhos técnicos ensaiados na renascença e que mais ou menos se manteve idêntica até aos dias de hoje. Nesta perspetiva, o projeto adota uma formalização semelhante a esses desenhos e confere-lhes um magnetismo inerente à beleza da cientificidade do desenho, que por mais racional que possa ser, não deixa de espantar nem de causar assombro pelo engenho e pelas capacidades conceptuais e técnicas desenvolvidas pelo ser humano para traduzir as forças cósmicas em seu proveito. O desenho torna-se, portanto, um código abstrato e perene do espaço, uma linguagem de precisão necessária antes de o espaço virar carne.