2012
roldanas, cabo de aço, presilhas, guinchos, gesso, ferro, grampos
Caixa Cultural de Fortaleza
Modelo, molde, rastro, resto.
O recente documentário de Werner Herzog, “Caverna dos sonhos esquecidos”, relembrou-nos do fascínio que exercem sobre nós os desenhos feitos pelos primitivos homens das cavernas sobre as paredes ancestrais das grutas de Chavet, Lascaux, Altamira e tantas outras.
Enigmas interpretados como anotações de acontecimentos vividos ou invocações de desejos a serem realizados, esses desenhos oscilam entre o registro e o projeto, definindo a intenção de perpetuar, através da imagem, algo sentido com a força da realidade, seja aquela lembrada ou a imaginada.
Essa passagem do real ao figurado traduz-se nesses desenhos numa operação espacial que vai do tridimensional ao bidimensional. Resulta numa síntese, em que os elementos do espaço sentido em três dimensões devem, inicialmente, coadunar-se em duas dimensões, aquelas das superfícies irregulares das cavernas em que são feitas as inscrições.
Não sabemos se a experiência de síntese em duas dimensões foi historicamente anterior ou simultânea àquela da criação de objetos em três dimensões. Seria a ação de moldar formas e criar a partir do inerte um passo adiante na evolução do pensamento plástico humano ou contemporânea àquela da representação bidimensional? No que se distinguem e aparentam, enquanto raciocínio formal e simbólico, esses dois processos?
Se a ação de desenhar sobre as paredes nasce do duplo impulso de registro e de imaginação – em que razão e mito mostram-se indissociáveis – seu produto pertence ao plano bidimensional, a uma realidade que é sua própria, embora em permanente relação com a realidade circundante. A ação de moldar, dar forma, parece ser, muitas vezes, o impulso de criar algo a partir do nada. Pois, embora possa servir-se de um modelo, e obviamente também tornar-se representação, a escultura tende a conferir ao seu produto uma existência real, no mundo, no continuum da vida. Cria algo que sai de um grau zero de presença para tornar-se uma coisa, inserindo-se no fluxo do espaço. De alguma maneira o seu gesto criador aproxima-se daquele do demiurgo.
O trabalho que Marcia Pastore nos apresenta de certo modo situa-se num momento entre esses dois esforços. Em grandes círculos de massa de gesso, ela imprime formas do corpo, partes que deixam sua marca fixando-se num tempo definitivo. Elas chegam a nós como registros permanentes de alguém ou algo que teve uma existência, mas que só permanece ali como um fóssil.
O processo que utiliza, de fato, assemelha-se a um dos mais comuns tipos de fossilização que acontece na natureza, a moldagem, aquele em que se forma um molde externo às partes duras de um ser vivo na rocha ou sedimento que o envolveu.
Suspensos por cabos e roldanas, os relevos assemelham-se também a moldes tirados em sítios arqueológicos, no caminho para serem recolhidos e estudados. Temos a impressão de sermos testemunhas de uma descoberta recém feita, da abertura de uma fenda no tempo, em que os objetos encontrados poderão nos dar a chave para muitos enigmas ainda por desvendar.
Brancas, as peças testam nossa percepção ao anunciar reentrâncias e saliências e, como os desenhos das cavernas, obrigam-nos a um exercício lento de observação e imaginação para que identifiquemos essas formas, numa oscilação entre a parte e o todo, o detalhe e o seu entorno.
Ao percorrê-los dispostos no espaço, à medida que nos acostumamos a fita-los, aos poucos revelam-se joelhos, cotovelos, pernas, dorsos, partes de um corpo que ali esteve e deixou seus rastros. Petrificados, esses fragmentos de membros parecem ter sido impregnados e consumidos na matéria para sempre, mas também parecem esperar que nós encontremos esses restos para decifrá-los e devolvê-los a inteireza.
São marcas de coisas que já não estão mais presentes, mas que reclamam uma existência que, finda, exige sua reconstituição. O que era orgânico, transformou-se em inorgânico. A simples forma gravada de um corpo que se extinguiu, a efígie decalcada na matéria que o envolveu e roubou-lhe os contornos, mas que não pode capturar seu conteúdo.
Na sala contígua, as peças alinhadas também lembram de alguma forma um outro processo de fossilização – a mumificação de organismos que se conservam imersos em camadas de resina ou âmbar. O aspecto translúcido, quente e liso da resina cor-de-rosa que envolve o molde de areia faz com que esses objetos assemelhem-se a cápsulas que conservam para sempre aquilo que está no seu interior, com o custo de que jamais possam nos dar acesso ao que contém.
Sejam vestígios, sejam marcas, esses objetos nos contaminam com uma sensação dupla, de chamamento e interdição. Mostram-se conservados para nós, exibem-se para nossa contemplação, sem que entretanto possamos tocá-los. Pedem para ser reconstituídos, mas estão extintos. A única possibilidade de reintegração seria a de destruir aquilo mesmo que os preserva ou de recriá-los.
Aqui voltamos ao segundo esforço de que falávamos inicialmente. O da criação a partir do inerte. Seria o caso de mais uma vez lançar mão da impetuosidade e dar vida à matéria? Pastore sabe que, hoje, não há espaço para gestos grandiloquentes, demiurgos – tudo parece já estar aí – ou definitivamente perdido.
O que pode realizar é a repetição de um gesto tênue – ela transfere, de maneira insistente, a forma vazia para o pó de gesso. Refazendo o molde daquilo que não está lá, recriando seu conteúdo, tenta restituir a inteireza da coisa perdida. O que surge desse processo é incompleto, são fragmentos. Não sabemos se são a promessa, a esperança, ou ainda a lembrança – mais uma vez, voltam a se parecer com as caças nas paredes dos homens das cavernas. São formas imprecisas, frágeis, mutáveis. Podem se esvair com um sopro, ou permanecer, para sempre, como ruínas.
Fernanda Mendonça Pitta