Vocábulo técnico para recalque em estruturas de grande porte.
(para Estrutura Exposta, de Marcia Pastore)
Gilberto Mariotti
Por meio de um deslocamento preciso, a operação sustentada por Estrutura Exposta, de Marcia Pastore, no jardim da casa-museu Ema Klabin revela e recoloca um apagamento. “Apagamento”, este termo que hoje temos usado com menos trava, carrega a violência por meio da qual operam manipulações da memória conduzidas pelo poder. “Esquecimento”, competência fundamental da memória, soa mais lateral, mas não cumpre o mesmo papel, o verbo esquecer não dá conta das implicações políticas articuladas por esta competência para além das condições ideais de sua forma no infinitivo. “Recalque”, por sua vez, talvez possa referenciar melhor os apagamentos que se têm aceitado desde sempre em nome da funcionalidade dos espaços, o que significa dizer também, da funcionalidade de nossas relações sociais. O termo, já em certa medida apropriado pelo senso comum, nos diz da demanda de reprimir, de afundar o terreno para que receba a fundação de algo a ser construído. Ao que parece, qualquer fundação envolve um certa repressão ou apagamento mais ou menos violento.
Se a casa é o corpo, e o corpo é a camada última em que vivem as marcas deixadas por opressões de diversas ordens, a casa então, como o corpo, se faz ouvir pelo sintoma. Algo de suas entranhas produz ruído, um chiado ou baque, que escapa do peso que se impõe de cima para baixo. Apesar da psicanálise tê-lo resinificado, o termo foi tomado de empréstimo da engenharia, que é recuperada aqui em seu imaginário disciplinar pelos materiais reconhecíveis e associados ao processo de construção, ao método rigoroso e calculista e à razão inequívoca que é sempre apresentada quando da necessidade de alguma manutenção, apresentada em sua função técnica. “Técnica” tende a aparecer quando é preciso que um lugar de autoridade um tanto quanto dúbio prevaleça: a figura do técnico é aquela que guarda um saber supostamente imparcial e que faz o que faz apesar de suas preferências pessoais: nada do que nos é apresentado como técnico pode ser autoral, aberto à discussão, o que aliás costuma impedir ou dificultar qualquer compartilhamento de saberes. Este lugar que se obriga a escolher de forma excludente entre o “fazer” e o “criar” é recusado pelo funcionamento de Estrutura exposta, pois que a intervenção vai, ao longo do processo de constituição de sua forma, apropriando-se destes saberes desde um posicionamento crítico, ao mesmo tempo amigável e desconfiado. As possibilidades ditas técnicas vão sendo incorporadas, o léxico dos materiais e todo um universo de nomenclaturas e soluções são compreendidos (com interesse genuíno) e reposicionados em um novo ordenamento que os acolhe ao reiterar a pergunta de aprendiz, de pertinência renovada: para quê mesmo isto serve? A serviço de quê está isto?
Em outra camada, ainda na mesma chave, caminha a problematização de um imaginário representante do saber arquitetônico: o estilo, a solução econômica no traço que une técnica e poética. Mesmo esta combinação de coisas que costuma garantir certo valor agregado intervenção rejeita em certa medida, ao mesmo tempo em que com ela estabelece parceria. Aqui a ferramenta do desenho não prescreve solução para o espaço, nem se contenta em ser artífice da execução de um comando prévio. Embora trabalhe a partir de um traço do que presume ser o da instalação hidráulica da casa, guarda de suas características mais o jogo interno de proporções e escala do que sua função de reproduzir ou instruir. Mais do que revelar uma estrutura que se escondia, revela sua dinâmica, e desta forma, os critérios pelos quais se instala, o modo pelo qual determina outras configurações que não a sua própria.
O partido da intervenção se coloca pela atenção à circulação – de água, de recursos, de pessoas – ao retomar o que guia o desenho da casa desde a primeira comanda de projeto: a relação hierárquica entre espaços de viver e de trabalhar, guardados seus limiares necessários, sinalizações de limite e sobreposições entre público e privado. Esta hierarquia é exposta em uma progressão didática desdobrada em etapas pelo percurso aberto ao público no jardim. O dourado do cobre dos dutos de água atesta o valor estruturante desta lógica, alimentada de uma fonte comum a toda linha de ramais que dela se serve. O que o projeto pensa como estrutural, como os pilares que se mostram em geral fundamentais e definitivos, se submete a uma racionalidade anterior da distribuição de recursos cuja falta faria ruir toda estrutura aparente. A casa deve aos modos de relações de trabalho sua forma.
Ainda que bem-sucedido, o recalque se faz sentir na medida em que seus efeitos reverberam em órgãos e ambientes pretensa ou inicialmente apartados do foco de sua atenção, de seu ponto de pressão mais acentuado, e algo do que se nos obrigou a esquecer permanentemente retorna como seu contraponto, em frequência diária, no plano quotidiano. O trabalho doméstico próprio do cuidado com os utensílios se apaga, mas retorna como trabalho especializado na catalogação de itens e manutenção de obras. O processo construtivo da casa, acuado pelas demandas de próprio funcionamento prático, racionaliza seus motivos, distrai-se com a reescrita do passado. O olho crítico que perfaz a genealogia dos processos o faz ao se ver ele mesmo no lugar de cuidador de seu objeto de estudo.
A contradição entre o caráter de domesticidade que se enuncia como valor para o público e o traço deixado pelo trabalho doméstico ganha contorno, não pela denúncia, que em geral se contenta em expiar culpas, nem da explicação, que muitas vezes racionaliza, pelo didatismo, o que pouco tem de racional, mas pelo reconhecimento de que as adaptações que tornaram possível, em primeiro lugar, a visitação pública dos espaços com que dialoga são invisibilizações constituintes do contexto em que se insere e do qual se alimenta enquanto trabalho de arte. Afinal, as instituições fundadas pela missão de guarda e manutenção da memória se constituem ao anunciar seus recortes, ajustar seu foco, o que significa excluir, afastar ao menos em parte e por algum tempo, a condição de constante questionamento que impediria a sistematização ordenada. Estrutura exposta põe em suspenso a cadeia explicativa que se desfia em manutenções intermináveis, em que reformas e adaptações se apresentam como solução de compromisso entre o que foi construído para durar e o que ainda demanda por transformação.