1990
ferro e gesso, borracha, argila, massa asfáltica; pedra, borracha e cimento
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo | 3a Bolsa Emille Eddé de Artes Plásticas
“Pensar contra si”*
Genericamente, talvez se possa dizer que o que tem estado em questão para a produção contemporânea, nos últimos anos, seja a própria idéia de processo, naquilo que esta pressupõe nossa capacidade de elaborar o tempo, de arrancá-lo ao absoluto, de investi-lo como experiência e de, assim, por a obra como vontade de transformação e como marca de humanidade devolvida ao mundo.
Não é preciso insistir, mais uma vez, que o que está em jogo já há algumas décadas, é o próprio sentido ético que consolida a vocação construtiva da arte moderna; a sobrevivência, hoje, e em que condições, de uma idéia do tempo como experiência acumulativa – em direção ao tempo perfeito da autonomia da arte (a experiência cubista de Braque e Picasso), ou de sua dissolução vitoriosa, por asceses gradativas, no real social (o construtivismo russo, Mondrian).
Mais que isso, entretanto, nunca pareceram tão indiferentes, do ponto de vista da arte contemporânea, as possibilidades de se reatar à idéia de processo, de uma experiência perceptiva originária, não mais moldada no movimento depurador de uma razão universal, conforme emergeria na tradição moderna, mas tal como é posta, com plenitude para a arte do século XX na arte povera e no pós-minimalismo, assimilando a contingência e a dissolução radical da forma e da circunstância histórica.
Reconheçamos que, de algum modo, ainda poderíamos ver até um discreto legado da tradição moderna, visto que essas duas balizas, de um modo ou de outro, reatavam à idéia de experiência, de uma experiência positiva enfim, do mundo. Mas, para além dessa presença, buscavam uma qualificação do tempo produtivo da subjetividade em oposição ao tempo reprodutivo e homogêneo de uma história da arte, ao tempo normativo da realidade social. Tratava-se para essas produções, portanto, de condicionar a experiência a sua imediata contextualização social, seja nos espaços desprestigiados da vida cotidiana, seja no anonimato e na degradação dos espaços públicos.
O que poderia ser, em todo caso, um corpo a corpo com os trabalhos da arte povera e com aquele conjunto de trabalhos posteriores a minimal – e afinal de contas não muito distante de nós – parece se tornar, forçosamente, uma situação de imagens. A arte contemporânea vê, então, a experiência sugada para a superfície da informação, de uma história precoce, logo fetichizada como cultura. E isso de tal maneira que essas tendências, que há pouco mais de 20 anos levavam ao limite a idéia de processo, da dissolução da forma em nome de uma ação, política e social a um só tempo, parecem, entretanto, não ter conseguido resistir aos imperativos de um certo “mundo da arte”, limbo pleno de garantias institucionais, no qual as formas proliferam segundo uma lógica interna, fadadas à incessante recuperação estética.
Restaria a nós o tempo em superfície, o tempo plano e instantâneo, implacável frente a todos os desejos de eloqüência e grandiosidade, isto é, desejos que parecem querer ser inscritos na profundidade da história e que, ao fim e ao cabo aspiram à permanência no mundo como formas. À arte contemporânea interessaria esse tempo plano, não como a resignação a um mundo sem tempo, mas como a possibilidade de fazer subsistir numa experiência atual e única, o tempo subjetivo da criação com o tempo culturalizado de uma história destituída de grandeza e de hierarquizações.
É inevitável, a essa altura, pensar no modo como a pop art e o dada viveram, cada um a seu modo, a impossibilidade de experiência: sem jamais positivá-la no mundo, atualizando incessantemente sua falta, engendrando a contaminação social da arte, seu deliberado comércio com categorias não-estéticas.
As esculturas de Marcia Pastore pertencem, decididamente, à sua circunstância: elas rompem, penosamente, a inércia do solo, num ponto qualquer do solo, pois não reclamam para si um centro privilegiado, e, nesse sentido, se oferecem imediatamente a um lugar público e anônimo. Elas são, poderíamos dizer, o coeficiente que resulta do movimento homogeinizador do solo versus o movimento de diferenciação engendrado na experiência do trabalho. E o único conteúdo de uma tal experiência é esses movimento de diferenciação – que deve ser entendido aqui como a possibilidade de qualificar o tempo, de produzi-lo na forma de uma intenção.
O tema reiterado das esculturas é então justamente esse: o esforço de intencionalidade que as faz emergir de um fundo aplainado de história e as contextualiza como fatos culturais,, inseparáveis de sua circunstância. Cada uma dessas peças está na iminência de se dissolver, corre o risco de seus materiais se romperem e retornarem à hierarquia de sua funcionalidade produtiva e de sua alienação social. Só aquele movimento – que do ponto de vista das obras, aparece como um mínimo de formalização, uma cinta tensionada comprimindo pedras, lâminas de ferro comprimindo gesso, só uma potência máxima de intenção é capaz de garantir sua existência mínima. Seria um equívoco, pois, tentar uma aproximação dos trabalhos de Marcia às referências da minimal art. Estaríamos, nesse caso, sendo enquadrados inadvertidamente na instância reprodutiva de uma história da arte, condicionados ao olhar institucional das analogias meramente morfológicas. E, se há aqui um procedimento construtivo, na franqueza com que o processo de produção dos trabalhos se explicita, isto não deve levar, seguramente, a que se entenda o termo construtivo como discretos, individuados a maneira minimal, de “uma coisa após a outra”, numa seriação indefinida que só tende a afirmar o Mesmo.
Se a inteligência da obra minimal é a da indiferença, de sua homogeneidade com o espaço que a constitui, numa situação em que os materiais estariam relegados à sua própria sorte, destituídos de expressividade, ocorre aqui justo o contrário. Porque há aqui um forte investimento expressivo nesses materiais, na medida em que cada um deles tende a otimizar seu movimento em oposição aos outros e ao próprio fundo no qual se alojam. A mais ínfima alteração, em tal correlação de forças, se imprimiria ao trabalho, e a ele seria incorporada, e, no limite, chegaria a aniquilá-lo. Mas a situação mantém-se latente, plena de possibilidades, porque instala-se aí uma subjetividade, a subjetividade constituída na contingência.
É surpreendente que essa vontade que as esculturas revelam, de não se deixar dissolver num estado entrópico generalizado, não surja como razão, anterior aos próprios trabalhos, como princípio ordenador, enfim. Pois o esforço de formalização em cada uma das peças é mínimo, conforme já se disse: apenas suficiente para que elas se destaquem de um plano indiferenciado. Podemos então considerar que os elementos rígidos nos trabalhos não são estruturas, não constituem geometrias, mas designam, antes, lugares. Ou, de outra maneira, estão ali para, em oposição aos materiais informes, indicar uma possibilidade de uma experiência inédita de tempo.
Experiência que lidaria e repotencializaria as duas representações do tempo mais provocativas para a arte contemporânea: a da pop, com seu tempo plano e impiedoso frente à idéia da experiência, frente aquilo que seria tido como um mito das origens, e a do tempo em profundidade, o tempo constituinte da povera e do pós-minimalismo.
Em algum instante imprevisível, essas obras superam sua irremediável condição de imagem, seu pertencimento à irremediável banalidade do real, e permitem o percurso fugaz do tempo perceptivo rebatendo-se sobre si próprio.
Sônia Salzstein
* E. M. Cioran