Núcleo

2018

ferro, porcas e parafusos, cabo de aço e núcleos extraídos das paredes 

Galeria Sancovsky, São Paulo

fotografia: Marcelo Arruda

 

Leia texto de Isabella Lenzi

CORPO QUE CAI

 

“O objeto é uma seção”

Juan Navarro Baldeweg

 

Sargentos, roldanas, cabos, prumos e gesso são indispensáveis no vocabulário de trabalho de Marcia Pastore. Desde o fim da década de 1980, a artista paulistana utiliza elementos que vêm do universo da engenharia para investigar jogos de peso e contrapeso, de impressão e vestígio. Suas esculturas e intervenções resultam da ação e reação que ocorre no encontro de matérias com distintas constituições e resistências.

 

A “verdade dos materiais”, expressão associada ao movimento moderno da arquitetura, permeia muito do seu trabalho. Ao se deparar com uma obra sua, o espectador rapidamente identifica as diversas partes que Marcia articula. Suas estruturas são na maioria aparentes e não estão dissimuladas ou revestidas. As operações que realiza também são fáceis de intuir ou, propositalmente, deixam rastros. São operações que vêm da tradição da escultura, de corte e modelagem, de retirada e reconfiguração de matéria. Porém, apesar dos encaixes aparentemente perfeitos e da sintonia fina, existe em suas obras uma tensão que advém do fato da artista subverter e corromper as funções e usos originais das técnicas e elementos construtivos que utiliza.

 

A particularidade de cada material e lugar está na base de tudo o que faz pois são eles que moldam os gestos e a plasticidade dos processos de construção e desconstrução de cheios e vazios que orquestra. Marcia propõe novas configurações e rearranjos de um alfabeto de peças e soluções já existentes e estabelece entre os elementos e na sua relação com o espaço equilíbrios frágeis, provisórios, na iminência do rompimento. Outras vezes, fabrica – ou busca no mundo – moldes e contramoldes: de seu corpo, de outros corpos ou de partes arquitetônicas – joelhos, ombros, costas, tijolos. Faz cortes, extrações e deslocamentos de matéria. Cria sistemas que transferem pigmento e pó de uma superfície a outra. Que riscam, marcam e rasgam planos.

 

Suas obras são transferências, embates de corpo a corpo, nos quais um marca o outro. Elas alteram a percepção que temos dos espaços e nos lembram que eles são o resultado de um processo social: são o que determina e é determinado pelo nosso modo de vida; o que condiciona e é o resultado de um aqui e agora histórico; o que nos aproxima e nos afasta dos demais e o que nos faz autônomos ou nos priva a liberdade. Essa consciência crítica nos permite, inclusive, uma emancipação ou uma postura ativa em relação ao espaço. Como na composição silenciosa 4’33’’ (1952) de John Cage, na qual o que se escuta é o ruído ambiente, por vezes, Marcia nos faz pensar em tudo menos nas intervenções que propõe, ou em tudo o que está ao seu redor. Em suas obras, o espaço é fundo, mas também é figura.

 

Ao mesmo tempo, suas esculturas e intervenções não explicitam a força e o trabalho necessários para produzi-las. Pelo contrário, imprimem leveza e movimento ao que é pesado e estático. Mas construí-las exige da artista grande esforço físico, habilidade e conhecimento técnico. Muitas vezes, Marcia as executa sozinha. Em outras, compartilha o processo ou é auxiliada por máquinas e profissionais específicos, na maior parte das vezes homens, com os quais trabalha lado a lado, de igual para igual. Com frequência, manuseia maquinarias pesadas e assume tarefas duras, como erguer, moldar, perfurar, ainda tão associadas a um universo tradicionalmente masculino. Ao executá-las, rompe paradigmas de gênero e envereda por um caminho que, por enquanto, poucas mulheres artistas trilharam.

 

As diversas etapas que compõem sua produção são tão importantes quanto – ou as vezes chegam a ser – o que vemos em suas obras e nos locais nos quais intervém. Para começar, o deslocamento por zonas periféricas de São Paulo, em grande parte distantes da onde é consumida e exposta a arte, é fundamental no seu fazer. Em fundições, depósitos com restos de demolição ou lojas de materiais de construção Marcia descobre soluções para seus projetos. Mas tão importante quanto os materiais que encontra, são as trocas com aqueles que a ajudam nos seus trabalhos: arquitetos, engenheiros e principalmente, operários da construção e da metalúrgica. A sabedoria empírica, daqueles que não tem um diploma, mas anos de experiência nas costas e nas mãos, é central em sua produção. Muitas das soluções construtivas que adota vêm dessa práxis, tão desvalorizada na sociedade que vivemos. A escuta atenta e o respeito por profissionais que estão na base da pirâmide social acaba por ser, também, uma maneira da artista questionar as relações de trabalho na construção civil, na arquitetura e na arte, a hierarquia que existe entre o fazer e o pensar, entre o canteiro e o desenho.

 

A intervenção Núcleo (2018), concebida para a galeria Sancovsky, trata, precisamente, do nosso desconhecimento e desinteresse em relação a constituição dos alicerces que nos abrigam. A obra é um desdobramento da instalação Corpo de Prova, desenvolvida em 2017 para o MuBE – Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia. Ambos projetos são nomeados a partir de um procedimento do universo da engenharia e geologia no qual se realiza uma sondagem para analisar terrenos, materiais e construções. Na linguagem técnica, a matéria retirada neste procedimento é conhecida como “corpo de prova”, “testemunho” ou “núcleo”.

 

Em contraposição às mansões muradas do bairro jardim que o circunda, o MuBE foi projetado no fim dos anos 1980 por Paulo Mendes da Rocha como um lugar para o encontro, uma ágora, uma praça do povo com uma esplanada que continua a calçada no espaço privado. No museu, a discussão política é sugerida pelo traço poético da arquitetura. Porém, pouco tempo depois de finalizado, o edifício foi rodeado por grades. Em sua intervenção, Marcia levou grandes blocos de pisos de estacionamento para o espaço externo do museu e retirou “corpos de prova” desse material. Com um sistema de cabos de aço e roldanas pendurou as amostras, atadas à arquitetura de Mendes da Rocha. A partir de uma técnica que remete à escultura clássica, a artista encontrou na pedra testemunhos que aludem ao destino privado e exclusivo do museu.

 

Na Sancovsky, ela faz perfurações diretas no edifício e retira amostras cilíndricas de uma das paredes da sala superior da galeria. Após extraídos da construção, os “núcleos” formam com cabos de aço e hastes metálicas um sistema em equilíbrio precário que desenha no espaço uma composição ritmada de corpos em suspensão. Nessa e em outras obras, Marcia realiza escavações arqueológicas, disseca o interior das coisas e desvela as camadas temporais e as geometrias que as constituem. Núcleo expõe as entranhas do espaço expositivo e quebra com o suposto aspecto asséptico do cubo branco da galeria. Tudo fica a mostra: a cor avermelhada do tijolo – escondida por baixo da camada de areia, cimento, cal e pintura -, os encontros entre as distintas matérias e o trabalho manual que as encaixou. O sistema de pesos e contrapesos formado pelas amostras da parede lembra a maquete de Gaudí, feita com correntes e sacos de areia, que demonstra de forma sintética quais as forças que atuam em uma curva catenária. Como o arquiteto catalão, um investigador das estruturas da natureza e dos sistemas tradicionais de construção, Marcia sugere um exercício de decupagem que desvenda e explicita as leis da física que agem sobre o mundo e nossos corpos. Ela leva o que parece estar no plano esquemático, da representação arquitetônica – do corte, do plano e da fachada – para o plano físico, concreto e tridimensional. Seus núcleos são metonímias de uma estrutura – material e social – muito maior. São, como disse o arquiteto espanhol Juan Navarro Baldeweg, o fragmento de um todo, tecido de maneira mais complexa do que aparenta na superfície. São, também, testemunhos do trabalho empreendido, dos riscos associados e do conhecimento acumulado por trás das construções.